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imagine suas paredes

Yo pretendo saber

Por qué extraña razón hoy sus ojos no ríen

Yo pretendo lograr

Con ternura y amor ver sus ojos felices

Trecho da canção El muchacho de los ojos tristes, de Jeanette

 

imagine suas paredes, exposição individual de Michel Au Hasard apresentada na pequena galeria, desde o título convoca os espectadores a uma observação ativa — seja situando quem entra na sala na mira dos olhos que compõem os trabalhos, seja convidando o corpo a uma coreografia exploratória de todos os planos do espaço, do rodapé ao teto. O convite se estende, naturalmente, às fabulações internas, às memórias e às fantasias de cada um que olha. Nesta ocasião, temos a oportunidade de conhecer um recorte recente da produção do artista, resultado de uma pesquisa que parte do desenho em suportes tradicionais e desemboca em experimentações com materiais corriqueiros como o EVA, no trânsito de imagens entre diferentes mídias e na interação desses desenhos, que extrapolam as margens do papel, com a arquitetura do espaço.

 

Encontramos agrupados aqui alguns itens bastante familiares. Tijolos, estrelas, casas e uma pirâmide. Embora sejam imagens bastante reconhecíveis, todas elas são acompanhadas de elementos que desestabilizam o conforto do trivial. Os trabalhos elaborados por Michel possuem expressão – e não me refiro apenas ao potencial do afeto emotivo que eles podem causar, mas às características antropomórficas manifestadas por esses sujeitos inanimados. Olhos conferem um sopro de vida aos objetos representados, sendo a maioria deles muito banais à primeira vista, tanto em seu conteúdo quanto em sua materialidade, muito mais próxima de um repertório do artesanato e do universo escolar do que convencionamos entender como arte.

 

Na série casas nos deparamos com três construções distorcidas por representações hiperbólicas de perspectiva, porém não encontramos janelas ou portas, mas pares de olhos entreabertos. O vazio do espaço em branco ao redor desses desenhos em papel é preenchido apenas por uma densa fumaça exalada por chaminés, os únicos orifícios/pontos de contato com o exterior além dos olhos. A tensão entre o espaço interno e externo demonstra um iminente colapso. Poderiam essas linhas tão finas, que delimitam as paredes, sustentar tamanha pressão?

 

Tijolos, a série de peças modulares que contorna a sala no plano mais baixo, chama a atenção para o aspecto físico do espaço. É como se a própria materialidade das paredes se anunciasse, no entanto, os tijolos em questão também possuem olhos espantados, zombeteiros, encabulados, inebriados, tal como lábios e línguas onduladas em padrões nada anatômicos. Cada um dos tijolos, ou seja, cada módulo dessa eventual parede vibra em uma frequência particular, fazendo-nos pensar no ditado popular “as paredes têm ouvidos”. Sim, também veem e, eventualmente, são dotadas de outros sentidos e sentimentos.

 

O potencial lúdico dessa série, que comporta diferentes organizações espaciais, é confirmado pela fotografia onde vemos os mesmos tijolos ordenados de outra forma. Portanto, uma vez que podemos vislumbrar uma dinâmica diversa de montagem, infinitas possibilidades virtuais de construção se desdobram e provocam o desejo de reordenarmos mentalmente os elementos. Embora a diversão do exercício mental já esteja garantida, a foto também devolve os tijolos criados pelo artista ao campo da imagem – à fotografia e à forma de casa. Não é à toa que essa imagem se apresenta em um formato tão singelo, 10x15cm, reposicionando o nosso corpo em relação a uma dimensão tão nostálgica: o tamanho padrão das fotos outrora reveladas e organizadas em álbuns de memórias.

 

Michel não se preocupa com a mimese virtuosa e “realista”, senão com as noções convencionadas ao redor dessas formas. Essa operação fica nítida em pyramide, onde a palavra escrita reitera o sentido da imagem. Além da filiação a trabalhos conceituais (como, por exemplo, ao As três cadeiras de Joseph Kosuth), a singela pirâmide em questão tenta nos convencer, inclusive através do olhar, de uma existência plena, embora não passe de uma série de investimentos de caneta sobre uma placa de EVA amarela. Se percebermos esses artifícios sem nos atermos à representação, talvez não seja a pirâmide que nos olha, mas o próprio polímero que não imaginava o seu destino quando foi acomodado na prateleira da papelaria.

É curioso notar que se, por um lado, os trabalhos demonstram interesse pelo olhar e pelo sistema óptico que permite que as imagens nos penetrem, por outro lado, a instalação dos trabalhos nos convoca a uma ação ativa do corpo. Os tijolos se organizam na parede, mas distantes da linha dos olhos, em um plano comumente desocupado, e precisamos nos abaixar para apreciar os detalhes. As estrelas nos convidam a conhecê-las movendo o pescoço ou – por que não? – deitando no espaço expositivo para ler a sorte no céu. Constelação, fixado ao teto da galeria, parece arrematar algumas das questões levantadas pelo conjunto de trabalhos. Além de reforçar essa dinâmica de ocupação espacial na qual os pontos de vista completam os sentidos, o teto da galeria é convertido em uma uma abóbada celeste, como se essa casa em convulsão tivesse finalmente se desmanchado. As paredes caíram, as imagens já não tem mais bordas. As estrelas que fazem parte do céu animadas com os mesmos recursos dos outros trabalhos, permitem refletirmos sobre a forma com a qual todos os itens da exposição são representados – a partir dos seus maiores clichês. As estrelas, grandes massas gasosas e luminosas que flutuam pelo espaço, chegam até nós como formas geométricas pentagonais, deixando para trás um rastro de movimento, chovendo sobre nossas cabeças. Como Susan Sontag descreve ao conceituar a sensibilidade contemplada pelo termo Camp¹, podemos colocar todas as imagens invocadas por Michel entre aspas – “estrelas”, “tijolos”, “pirâmides”, “casas”, “olhos” e assim por diante.

 

Esses clichês da representação foram coletados, sobretudo, do repertório visual das primeiras animações oriundas do começo do século XX, de Betty Boop às Silly Symphonies dos estúdios Disney. Além das experimentações técnicas efervescentes nesta aurora do cinema, estimuladas pela novidade tecnológica, as convenções dessa nova linguagem estavam ainda sendo estabelecidas. Dentre os recursos narrativos/visuais mais empregados no período (muitos deles em uso até hoje), estava o de conferir comportamentos humanos e agência a objetos sem vida, a animais, plantas e até mesmo a partes avulsas do corpo. Com um certo distanciamento no tempo, muitas dessas abordagens soam perturbadoras ou grotescas, mas também um bocado ingênuas.

 

A beleza e o frescor dessa inocência, que parece circunscrita à infância, seguem operando na produção compulsiva do artista, que parece evocar imagens como quem brinca. Recusa o material tradicional, recusa as formas de disposição espacial convencionais, recusa as imagens nobres. Michel se vale de procedimentos de pós-produção², mixagem e edição dessas imagens seminais da animação, reinterpretadas em um desenho que flerta com o tridimensional, devido ao volume e fofura do suporte, uma espuma sintética e colorida. As negociações entre técnica e suporte, desenho e escultura, imagem e imaginação, inanimado e animado, familiaridade e estranhamento, ver e ser visto, tornam o conjunto de trabalhos um tanto difícil de classificar, sob o risco do julgamento dos olhos voltados para nós.

 

Por fim, retomo o título da exposição, imagine suas paredes, destacado por Michel de um texto de Bachelard³, para sublinhar a escolha de palavras. O convite a um gesto imaginativo e subjetivo não tem um ponto de chegada definitivo. Cabe a cada visitante imaginar as suas margens, e a casa virtual construída aqui abriga todos os devaneios.

 

Gabriel Pessoto, julho de 2023.

 

1 SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. 2020.

2 BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

3 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

© Michel Au Hasard 2025

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